Ciência, moral e bem público: Reflexões sobre o conhecimento a serviço da sociedade em Rousseau e Mercier
Palavras-chave:
Rousseau, Mercier, Ciência, Moral, PolíticaResumo
Rousseau tornou-se famoso por suas fortes críticas aos males advindos das relações sociais, entre eles os que teriam sido causados pelos progressos das ciências e das artes ao longo dos séculos, os quais não foram seguidos, na exposição feita pelo filósofo em seu Primeiro Discurso, por avanços nos campos da moral e da política. Assim, as formas de civilidade dos povos modernos lhe pareciam eivadas de corrupção em diversos modos, algo que as ciências e as artes não apenas ajudavam a agravar, mas igualmente a ocultar com “guirlandas de flores” sobre as correntes da servidão, como na célebre imagem do Discurso. Porém, se esse diagnóstico negativo parece prevalecer na obra do genebrino, ele não deixa de ser tensionado pelo autor com uma perspectiva instigante que, próxima à conclusão do texto, destaca as academias como uma maneira de combater os prejuízos que as ciências e as artes geravam, extraindo o remédio a partir da própria origem do mal a ser combatido. Caso essas instituições fossem apoiadas pelos governantes e dirigidas por sábios verdadeiramente imbuídos do desejo de contribuir para a felicidade dos povos, as ciências e as artes por elas difundidas se uniriam à virtude e seriam fontes de “luzes agradáveis” e de “instruções salutares” para o gênero humano, segundo o pensador. Mesmo que fossem paliativos no contexto mais amplo de um cenário histórico muito distante dos valores políticos e morais nutridos por Rousseau, o destaque dado a essas iniciativas nos estimula a discutir a complexidade das ideias do filósofo acerca do papel social das ciências e das artes, indo além do mero discurso condenatório e abarcando novos elementos em outros de seus textos. E nesse sentido, também nos permite fazer algumas pontes com o estudo da obra de um outro autor cuja escrita foi, em vários aspectos, inspirada em Rousseau, o francês Louis-Sébastien Mercier. Em sua ficção futurista O Ano 2440, ele delineou o cenário de uma sociedade aperfeiçoada pela concretização de ideais da filosofia das Luzes, o que teria conduzido a um regime republicano na França, assim como a consideráveis melhoramentos nas condições de vida da população, sobretudo por uma organização mais racional dos recursos e espaços disponíveis. Na utopia sonhada por Mercier, os saberes científicos avançaram muito e foram aliados à formação moral dos cidadãos, como no caso das crianças cuja educação era feita tendo a Enciclopédia de Diderot e d’Alembert como cartilha elementar, ou dos adolescentes que eram ensinados a perspectivar o lugar do ser humano na ordem do universo ao contemplarem, com o telescópio e o microscópio, os “dois infinitos” da natureza. Então, analisando esses e outros usos da ciência e da tecnologia a serviço da sociedade, tais como retratados por Mercier, podemos refletir junto com ele e com Rousseau sobre a importância desses conhecimentos e instrumentos para o bem público, especialmente em nossa época marcada por práticas de negacionismo científico e desinformação.
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